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A composição sobre repertórios tradicionais em peças da coleção “For Children” de Bartók

Prof. Dra. Julia Tygel

A composição sobre repertórios tradicionais em peças da coleção “For Children” de Bartók

Júlia Zanlorenzi Tygel
Universidade de São Paulo – julia.tygel@gmail.com

Resumo: A coleção For Children foi inicialmente editada em 1909, poucos anos após Bartók ter iniciado suas pesquisas sobre repertórios tradicionais. As peças da coleção são arranjos de melodias recolhidas pelo compositor, muitas delas preservadas em fonogramas originais e transcrições. O processo de arranjar essas melodias pode ser entendido como um laboratório criativo em que o compositor começou a forjar técnicas composicionais que resultariam, mais adiante, em processos complexos de sua técnica, como o policromatismo modal. Neste artigo analisamos a peça n. 18 do primeiro volume da coleção, baseada em um tema tradicional húngaro, comparando nossa transcrição da melodia gravada, transcrições do compositor e peça final, que evidenciam esse processo.

Palavras-chave: Béla Bartók, música tradicional, música folclórica.

Composing based on tradicional music: Bartók’s approach on works from the collection For Children

Abstract: The collection For Children was first published in 1909, a few years after Bartók had begun his researches on traditional music. The pieces are arrangements of traditional melodies collected by the composer, many of them still preserved in original phonograms and transcriptions. The process of arranging this melodies can be understood as a creative training for the composer, who would later develop from the experience advanced techniques of composition of his musical language, such as the modal polichromaticism. On this paper we analyse the piece n. 18 from the collection’s first volume, based on a traditional Hungarian theme, through comparisons of our own transcription of the recorded song, transcriptions by the composer and the final piece, which corroborate the process described.

Keywords: Béla Bartók, traditional music, folk music.

1. Os arranjos de melodias tracionais húngaras na coleção For Children

 

A coleção didática “For Children” de Bartók (1909, revisada em 1945) é formada por arranjos para piano de melodias folclóricas húngaras (vol. I) e eslovacas (vol. II) recolhidas pelo próprio compositor a partir de 1904. Elas estão entre as primeiras investidas de Bartók no uso composicional de materiais tradicionais. Ao compararmos analiticamente algumas peças do volume húngaro da coleção com suas fontes primárias – as gravações em fonograma, transcrições do compositor de seu caderno de campo e da posterior publicação em seu livro Hungarian Folk Song (BARTÓK, 2002 [1924]) – podemos chegar a interessantes reflexões sobre o desenvolvimento inicial de técnicas composicionais já identificadas e bastante discutidas em suas obras mais maduras, como por exemplo o chamado policromatismo modal (BARTÓK, 1976; ANTOKOLETZ, 1984). Muitas dessas melodias são modalmente ambíguas por não possuírem todos os graus da coleção. Temos identificado que, quando há essa ambiguidade modal na melodia, o compositor explora sua harmonização não apenas com acordes dos campos harmônicos implícitos, mas também desenvolve a idéia de II Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS ECA/USP ambiguidade modal com a inclusão de acordes de campos harmônicos de outros modos próximos, sem no entanto desconstruir completamente a sonoridade modal original. Essa abordagem vai de encontro aos estudos que Bartók estava desenvolvendo à época em parceria com Kodály, com a catalogação de melodias húngaras a partir de suas características melódicas. De forma análoga ao que Arauco (1987) identificou no processo de composição de peças da coleção Chrismas Carols (Sz. 57, 1915), a partir da comparação entre transcrições de canções romenas que Bartók realizou em diferentes momentos, notamos que, nas melodias húngaras da coleção For Children, desde o fonograma até a melodia efetivamente usada na peça, passando por transcrições do compositor, houve com frequência um processo gradativo de adaptação das melodias a padrões estruturais ligados a certas normas da então música erudita ocidental. Esse processo pode ser visto tanto como uma forma de tradução da música tradicional húngara, visando atingir um público específico acostumado à tradição da música ocidental germânica (ARAUCO, 1987), como também pode estar associado aos estudos analíticos do compositor sobre esses repertórios, notando na transcrição final apenas os elementos em sua opinião constituintes da melodia, em conformidade com os padrões recorrentes do gênero de sua classificação, e descartando as variações decorrentes de uma interpretação em particular (transcrição êmica). Também em analogia ao que Arauco apontou sobre a coleção Christmas Carols, notamos que, em peças da coleção For Children, com frequência Bartók resgata na composição final elementos que havia descartado em suas transcrições, ora na própria melodia, e com frequência no parâmetro harmônico. Como nossa intenção é verificar as primeiras investidas de Bartók na composição a partir de repertórios tradicionais, tomamos como referência a edição original da coleção de 1909. Pelo caráter resumido deste artigo, não inserimos comentários sobre as mudanças feitas pelo compositor na edição de 1945, que estão contempladas na tese em desenvolvimento.

2. Apontamentos analíticos sobre a peça n. 18 da coleção For Children

Para a análise desse arranjo, consideramos quatro fontes da melodia tradicional húngara: a gravação recolhida por Bartók em fonograma1 e nossa própria transcrição; a transcrição do compositor de seu caderno de campo, identificada e disponibilizada por Lampert (2008: 76); a versão publicada sob o número de catalogação 128 (BARTÓK, 2002 [1924]); e a melodia utilizada na composição final. Para facilitar a comparação, as transcrições foram transpostas para terminarem na mesma nota da melodia da peça. II Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS ECA/USP Em nossa própria transcrição, identificamos a nota Ré como principal, por sua maior recorrência e localização no início e final de frases, em um contexto modal ambíguo eólio ou mixolídio, indefinido pela ausência do terceiro grau (Fá♮ ou Fá#). No entanto, a nota Sol também possui destaque, especialmente pelo fato de muitas cadências de final de frase ocorrerem com um salto de quarta descendente da nota Sol para a nota Ré, o que para ouvidos acostumados ao tonalismo provoca a sensação de que Ré seria a fundamental de um acorde de V grau dominante de Sol, formando semicadências e tornando a melodia circular. Considerando a possibilidade do centro em Sol, a melodia estaria em um contexto de Sol maior com a presença de Fá#, e Sol mixolídio com a presença de Fá♮. A Fig. 1 mostra a interação entre esses possíveis modos tendo tanto Ré como Sol como centros, e a Fig. 2 nossa transcrição da melodia, com sugestões intencionalmente simplistas de harmonização para fins de comparação com a harmonização de Bartók, optando fortuitamente pelo Fá#.

A Fig. 3 apresenta as duas transcrições do compositor na mesma pauta, a fim de facilitar a visualização de suas semelhanças e diferenças: na voz superior a transcrição do caderno de campo, e na inferior a melodia posteriormente publicada.

Uma comparação entre essas três versões evidencia um processo gradativo no sentido de uma simplificação e regularização rítmica, clarificação estrutural, além da definição do campo harmônico. Nossa versão possui métrica irregular, tendo a parte A compassos binários e a B alternância entre compassos ternários e binário; e em A e B notamos a melodia como anacrúsica. As versões do compositor possuem fórmula de compasso regular implícita múltipla de dois (4/4 ou 2/4), e consideram as notas iniciais de A e B como não anacrúsicas. Na parte A, isso resulta na presença da nota Ré nos primeiros tempos de três dos quatro compassos da frase, enfatizando-o como centro (em nossa versão o Ré estava nessa posição em apenas um dos quatro compassos). A versão do caderno de campo possui, como a nossa, tercinas (compassos 5 e 11) e uma síncopa com semicolcheia (compasso 11), no entanto sem coincidir com os locais de suas ocorrências. A versão publicada eliminou esses elementos, deixando a melodia apenas com figuras rítmicas de mínima, semínima e colcheia. Ambas as transcrições do compositor retiraram da parte B notas ornamentais presentes em nossa transcrição, clarificando sua estrutura: a bordadura Dó-Si no segundo tempo do compasso 6 e as repetições rítmicas da nota Ré no início do compasso 7 (Fig. 2). Somado à regularização rítmica, isso tornou a estrutura frásica dessa seção mais clara, inclusive com a padronização de todas as frases com 4 compassos iguais cada. No entanto, na transcrição publicada, Bartók inseriu nos compassos 6 e 8 as notas ornamentais Dó (appogiatura de Si) e Fá# (nota de passagem), tornando-os motivicamente regulares. A inclusão do Fá#, ausente nas outras transcrições, define o modo da melodia como Ré mixolídio. Na melodia usada na peça final, contudo, ele voltou a retirar o Fá# e, para manter a regularização motívica, realocou a nota Dó no último tempo do compasso anterior II Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS ECA/USP (no lugar da última nota Mi do compasso 7 da versão publicada). Isso restabeleceu a ambiguidade modal da melodia, ampliando as possibilidades de exploração harmônica. Na melodia efetivamente usada na peça final, Bartók voltou a alterar o posicionamento e inclusão de síncopas, inserindo algumas e retirando outras em comparação com sua transcrição publicada. Inseridas sem seguir a melodia gravada, elas consistem em outro recurso de padronização motívica e formal, diferenciando a parte A, mais sincopada, da parte B, menos sincopada. O compositor retirou ainda a pausa do final da frase A, presente em suas transcrições, igualando-a ritmicamente ao final da frase B. A Fig. 4 mostra essas alterações nas partes A e B, desconsiderando recorrência dessas seções na forma da composição, que discutiremos adiante. Os valores rítmicos foram reduzidos à metade.

 

A despeito dessa padronização da melodia nas transcrições nos parâmetros rítmico, motívico, frásico e estrutural, na peça final Bartók realoca a exploração de irregularidades da melodia no parâmetro harmônico. Arauco (1987) justifica o mesmo processo presente em peças da coleção Christmas Carols com a idéia de que a padronização da melodia geraria uma maior coesão horizontal, permitindo maior liberdade vertical. A peça n. 18 da coleção For Children expande a forma da canção original adicionando ao seu final uma sessão B e outra A, ampliando em ocorrências as possibilidades de sua harmonização. Enquanto a forma original é AABA2 a forma da peça final é AABABA, sendo que, na primeira parte, AABA, a melodia ocorre em registro agudo, e na parte restante BA, ela ocorre em registro grave, marcando a inclusão de novas seções pelo compositor. O acorde mais enfatizado na peça em inícios e finais de frase é Ré maior – a tônica de Ré mixolídio – corroborando com a definição modal da transcrição publicada do compositor. No entanto, em função desse acorde ocorrer frequentemente com sua sétima menor, dentro do campo harmônico modal, ele pode ser também interpretado como tendo função de dominante V7 do acorde de Sol maior – o IV grau no campo harmônico de Ré mixolídio. Essa relação harmônica dúbia retoma a ambiguidade de definição da nota principal II Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS ECA/USP como Ré ou Sol presente na melodia original do fonograma, que havia sido melodicamente diminuída nas transcrições do compositor. Ela é explorada em toda a peça, inclusive no final, deixando dúvidas ao ouvinte se o Ré maior com sétima menor seria, realmente, o acorde tônico, ou se a peça terminaria em suspensão. Por isso, apesar da maior força do Ré como centro, nossa análise harmônica considerou também a possibilidade de centro em Sol. Além da relação ambígua entre Ré mixolídio e Sol maior, com pequenas alterações em algumas notas Bartók empresta acordes de campos harmônicos próximos: Ré maior, Ré eólio, Sol mixolídio e Sol eólio. Isso pode ser entendido como o desenvolvimento da idéia de dubiedade em relação ao campo harmônico da canção original. Já no início, diferentemente do que ocorre em outras peças da coleção For Children que analisamos, não delimita imediatamente o ambiente harmônico, sugerindo gradativamente a harmonização da melodia com a nota pedal inicial Ré e notas do acorde de Ré maior com sétima menor esparsamente tocadas em voz interna (Fá# no compasso 2 e Dó no compasso 3), e firmando o acorde com clareza, embora em terceira inversão, apena no compasso 5 (Fig. 5). Quando a frase A se repete, a partir do compasso 5, desenvolve-se uma progressão harmônica que começa a explorar as relações entre os possíveis centros em Ré mixolídio ou Sol maior. Nos compassos 5-6 ocorre a progressão modal cadencial IV-I em Ré mixolídio. No entanto, se considerarmos Sol maior como centro, é possível interpretar a existência de uma progressão cadencial V7-I entre os compassos 1-5 (Fig. 5).

No compasso 7, a sustenização do Dó forma o acorde de V grau maior de Ré, localmente causando uma cadência tonal emprestada de Ré maior (Fig. 6). Considerando ali o centro em Sol, esse acorde pode ser ainda entendido como um acorde de Lá maior dominante, o V grau secundário do acorde de V grau Ré maior, formando uma semicadência no II Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS ECA/USP compasso 8, e uma cadência no compasso 9. A sonoridade original de Ré mixolídio ou de Sol maior é restabelecida na sequência, com a com a naturalização da nota Dó no compasso 9. Toda a parte B possui uma harmonização mais sugerida, com vários acordes incompletos e progressão de terças paralelas, sem acompanhamento em registro grave à exceção de algumas notas no baixo, que enfatizam a nota Ré. Apesar dessa ênfase, essa ausência de acordes bem definidos amplifica a sensação de suspensão em relação à definição de um centro.

Há na peça duas ocorrências da nota Fá♮, retomando a ambiguidade modal da canção original ao sugerir, localmente, Ré eólio ou Sol mixolídio (Fig. 7). A primeira é no compasso 13, formando o acorde de Ré menor. Considerando o centro em Sol, esse acorde poderia ser de v grau menor no campo harmônico de Sol eólio, sonoridade que é corroborada adiante pela formação enarmônica de um ii grau diminuto no primeiro tempo do compasso 15. Esse último acorde não pode ser explicado dentro dos campos harmônicos com centro em Ré, priorizando a escuta do trecho em Sol. A outra única ocorrência da nota Fá♮ dá-se no compasso 20, em um acorde que pode ser interpretado como de IV7 grau em Ré menor, ou I7 em Sol mixolídio. A peça termina da mesma forma que começou, com a última repetição de A podendo ser interpretada como uma reafirmação de Ré mixolídio, ou como a finalização em suspensão no acorde de V grau de Sol maior.

Referências:

ANTOKOLETZ, Elliott. The Music of Béla Bartók: A Study of Tonality and Progression in Twentieth-Century Music. Berkeley, Los Angeles & Londres: University of California Press, 1984.

ARAUCO, Ingrid. Bartók’s Romanian Christmas Carols: Changes from the Folk Sources and Their Significance. The Journal of Musicology, Vol. 5, N.2, pp.191- 225, University of California Press, Primavera de 1987

BARTÓK, Béla. The Hungarian Folk Song (edição revisada por Peter Bartók). Homossassa, Florida: Bartók Records, 2002 (primeira edição publicada em 1924).

BARTÓK, Béla. Harvard Lectures (F). In SUCHOFF, Benjamin (ed.). Béla Bartók Essays. Londres: Faber & Faber, 1976. Pp. 354-392.

BARTÓK, Béla. For Children. Partitura. Budapest: Rosznyai Károly, 1909.

LAMPERT, Vera & VIKARIUS, Laszlo (ed.). Folk music in Bartók’s compositions: a source catalog; Arab, Hungarian, Romanian, Ruthenian, Serbian, and Slovak melodies. Budapeste: Hungarian Heritage House, 2008.